Ontem (01/04/2021) vimos no BBB que a empresa iFood, patrocinadora do programa, enviou um almoço para o líder Arthur no qual as embalagens eram feitas de mandioca (@jafuimandioca). Esse feito aconteceu depois de um episódio em que a ex-BBB Carla recebeu seu lanche iFood com muitas embalagens de plástico, gerando uma repercussão negativa pela internet.
As críticas partiram de pessoas com legítimas preocupações com o uso de embalagens de plástico, mas que, na minha visão, carecem de aprofundamento sobre o contexto assustador da geração de lixo de uso único no Brasil. Não bato palma pra iniciativas supostamente ecológicas de grandes empresas, muito menos quando estão vinculadas à manobras de marketing milionárias. A Já Fui Mandioca é uma empresa que eu conheço e respeito há anos, e eu queria mais é que todas as embalagens descartáveis de plástico fossem trocadas por mandioca! Mas infelizmente o buraco é MUITO mais embaixo, por isso vou levantar alguns pontos com vocês:
Um almoço com embalagem de mandioca não resolve absolutamente nada.
Elogiar a iniciativa pontual da empresa não faz nem cosquinha no problema. Quantos milhares de deliverys com embalagem de plástico são feitas diariamente somente pelo iFood? Recebemos a entrega, abrimos, consumimos o alimento e descartamos em menos de 1h. A empresa é co-responsável por isso, por prestar um serviço para os consumidores cuja base depende da geração de embalagens descartáveis.
Esse plástico das embalagens não é reciclável por estar contaminado com resíduos orgânicos – torna-se inviável economicamente reciclá-lo por isso. A tipologia do plástico utilizado nas embalagens também não é das melhores para reciclagem, são materiais projetados para descarte após uso único. Quaaaando a embalagem é de papelão, ou aquelas compostas de papel com um filme plástico, rola o mesmo: não é reciclável. No melhor dos cenários, vai para o aterro sanitário – mas no Brasil ainda existem 2.707 lixões mapeados, fora os terrenos baldios, valões, rios etc que a população recorre para despejar seu lixo quando não é atendida pela coleta municipal (23,8% da população ainda não tem coleta regular de lixo no Brasil).
Ainda que fosse possível reciclar essas embalagens, no Brasil apenas 30,4% da população tem acesso à coleta seletiva, e apenas 22,2% dos municípios brasileiros têm esse serviço. E mesmo que o município tenha coleta seletiva, nem sempre toda a sua população é atendida. Dessas que o são, quantas de fato aderem à ela? Será que sabem separar seu resíduo corretamente?
Sinto informar-lhes ainda que infelizmente uma grande parte dos poucos resíduos recicláveis que a coleta seletiva recebe não são efetivamente reciclados, pois não temos uma indústria de reciclagem consolidada e estruturada de forma a dar conta de tudo. Ou seja: muitos recicláveis vão pro aterro sanitário mesmo.
Não podemos romantizar a reciclagem focando apenas no produto ou numa ação individual/pontual – estamos longe de sermos eficientes e de termos uma logística consolidada nesse sentido. Não aplaudo uma iniciativa pontual de uma empresa que fez isso para silenciar as críticas que recebeu por um marketing feio , porque foi feio demais ver a mesa da Carla cheia de embalagem de plástico. Mas mais feio ainda é saber que isso continua rolando em todos os pedidos, pois a empresa não instituiu uma política de adesão a embalagens biodegradáveis para todos os pedidos.
Ao contrário, não falou absolutamente nada a esse respeito, não fez um comunicado em suas redes, nada. Apenas mandou o Arthur ler o textinho explicando que a embalagem era feita de mandioca. Acabou aí.
Mas as páginas de conteúdos ligado à sustentabilidade na manhã seguinte ao programa estavam todas aplaudindo a iniciativa. Oi? Foi UM almoço, não se enganem. Deliverys cheios de plástico continuam poluindo o planeta diariamente! “Parabéns iFood” aonde?
Embalagem compostável não muda muita coisa se ela não for de fato compostada.
Até onde eu sei, o BBB não separa seus resíduos orgânicos para compostagem. Devem ir para um aterro sanitário mesmo, onde a decomposição (anaeróbia) dessa matéria orgânica produz gás metano, que é 25x pior que o CO2 para o efeito estufa. O metano possui um potencial calorífico excelente, podendo ser convertido em energia elétrica se for captado nos aterros! Ótimo né? Infelizmente, não muito. Como eu comentei recentemente nos stories do Instagram um dia desses, a captação de gás metano nos aterros é um processo com muitas perdas – uma pequena parte é efetivamente captada, e o restante é liberado para atmosfera, contribuindo para o aquecimento global.
É claro que é muito melhor que qualquer embalagem seja biodegradável em vez de feita de derivados de petróleo. Isso não preciso nem dizer. Mas focar simplesmente em trocar um resíduo não reciclável por um compostável não adianta nada se a compostagem não se tornar uma forma disseminada de destinação dos orgânicos, pois estes também acabam se tornando um problemão no aterro em vez de serem uma solução maravilhosa via compostagem.
Caso você não saiba, a compostagem é um processo de transformação dos resíduos orgânicos em adubo, compostos, biofertilizantes. Em resumo, fechamos o ciclo e devolvemos o alimento ao solo para que se torne alimento novamente. Você pode ter uma composteira em casa, no seu quintal ou na sua área de serviço. Pode ser direto no solo, em caixotes, em caixas reaproveitadas de plástico, com ou sem minhoca. Se você tiver sorte, na sua cidade pode ter empresas que coletam seus orgânicos e compostam pra você – aqui no Rio tem o Compostaê e a CicloÔrgânico.
O foco deve ser a não-geração de lixo.
Eu vivo batendo nessa tecla e não canso. A ordem de prioridades pra gente resolver DE VERDADE o problema do lixo global deve ser NÃO GERAR LIXO. Parece óbvio e é. Mas a gente esquece toda vez que surge um debate de algo “incrível” e “inovador” ligado ao nosso consumo. E a galera ligada à “sustentabilidade” e “dicas ecológicas” na primeira oportunidade bate palma pras grandes corporações milionárias que floreiam seu marketing pra gente esquecer o tanto de problema que eles causam.
Lembre-se: o lixo é um erro.
Vivemos sob uma lógica de consumo que se reinventa constantemente pra manter girando o capitalismo. Não podemos morder essas iscas e achar que só porquê em um programa o iFood resolveu enviar meia dúzia de embalagens de alimento feitas de mandioca, que por isso a empresa é ótima e está de parabéns. Bater palma pra isso não faz o menor sentido se continuamos incentivando o consumo de bens descartáveis por impulso, que é a armadilha que os serviços de delivery promovem.
Não posso deixar de mencionar que a situação dos entregadores do iFood é algo extremamente problemático na atualidade e a gente não pode esquecer disso. Não, eles não são “guerreiros” e muito menos “empreendedores”. Eles infelizmente se encontram numa situação de trabalho extremamente exploratória e precária. Não possuem nenhuma seguridade trabalhista, e num cenário pandêmico se arriscam diariamente para entregar para um restaurante que não contratou eles, para uma pessoa que não contratou eles, numa bike que não é deles. Recomendo que vocês reflitam sobre isso e pesquisem mais sobre a “ifoodização” ou “uberização” do trabalho. Não romantizemos.
Primeiro a gente precisa parar de consumir e fazer o máximo pra não gerar lixo. O máximo. Esse tem que ser o objetivo das estratégias, dos planejamentos, das iniciativas. Repitam comigo: o foco deve ser a não-geração. Não caiam na historinha verde que as grandes empresas mostram no programa de maior audiência da TV, ou em qualquer outro espaço. Eles são o problema. Usar uma paleta de tons naturais e terrosos, colocar uma folhinha verde na propaganda e tudo mais, não me engana.
Vamos abrir o olho?
Imagens: Unsplash, GShow.
Dados: SNIS 2020.